Meio Ambiente, Jornalismo & Divulgação Científica

As Barreiras da Costa Pataxó




Um olhar sobre a história natural e as invasões humanas no extremo-sul da Bahia, Brasil

Por Caio Gabrig Turbay

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Conheça um pouco mais sobre as riquezas naturais da Costa Pataxó e os impactos humanos neste episódio de “Uma Pedra no Caminho”.

Mioceno-Plioceno: entre 11 milhões e 2,5 milhões de anos atrás.

As lembranças dos tempos dos gelos

As capas de gelo da Antártica e da Groenlândia estão em formação. O clima mais frio na Terra faz com que as regiões tropicais fiquem mais secas. Grande parte do território do Brasil é dominado por savanas. Rios caudalosos, inundações catastróficas e deltas depositam os sedimentos do Grupo Barreiras.

Pleistoceno: entre 120 mil e 18 mil anos atrás

O mundo perdido

Os períodos glaciais se intensificam, mudando as paisagens da Terra. Levas migratórias trazem o homem até o território do Brasil. Durante os períodos mais quentes do planeta, a subida no nível dos oceanos cria frentes de erosão nos sedimentos do Grupo Barreiras – formam-se as falésias. A savana persiste em grande parte do brasil, abrigando uma megafauna de mamíferos.

Final do Pleistoceno e início do Holoceno: entre 18 mil e 5 mil anos atrás

Formação da Hileia Baiana

A megafauna se extingue. As savanas recuam para o interior do continente. Surge uma conexão entre a Mata Atlântica e a floresta amazônica. Na Bahia, espécies arbóreas amazônicas se misturam com as espécies da Mata Atlântica. O nível do mar sobe progressivamente e fica de três a cinco metros mais alto que o atual. As falésias continuam a ser esculpidas.

Holoceno recente: de 5 mil anos atrás até os dias atuais

As invasões

O clima do planeta torna-se progressivamente mais quente e ameno, enquanto o mar se estabiliza próximo ao seu nível atual. Populações ancestrais nômades adaptam-se ao território e passam de caçadores-coletores a comunidades aldeadas. No extremo-sul da Bahia, pataxós, tupiniquins e tupinambás desenvolvem culturas próprias. No século XVI, chegam os europeus; no século XX, as madeireiras; e, no século XXI, o turismo de massa e a especulação imobiliária. A destruição do território se intensifica, alimentada por uma cultura de desmatamento apoiada por grande parte da sociedade. Órgãos governamentais, seja por corrupção ou inoperância, tornam-se cúmplices do caos, enquanto as populações nativas são marginalizadas. O futuro permanece incerto.


Localizada no extremo-sul da Bahia, a Costa Pataxó, conhecida pela sociedade brasileira como “Costa do Descobrimento”, abriga um mosaico de unidades de conservação, terras indígenas e fragmentos de Mata Atlântica que figuram entre os mais importantes do Brasil.

Os olhos buscam no horizonte, sinais de terra. A poucas milhas do litoral, a costa é baixa e os raros acidentes geográficos, deixam transparecer a proximidade do continente. 

De perto, uma faixa firme e contínua com tons ocres e coberta de matas, começa a se delinear: são as “barreiras”, que Pero Vaz de Caminha descreveu ao rei de Portugal em 1500, durante a invasão portuguesa no sul da Bahia.

Vista da praia as “barreiras” são imponentes. As escarpas sedimentares íngremes, com cerca de 20 metros de altura, criam uma muralha quase intransponível. Ela só pode ser vencida em poucos trechos, onde os rios descem do altiplano costeiro e chegam ao mar. 

A aparência é singular. As cores terrosas ao longe, dão lugar a uma miríade de estratos multicoloridos, variando do branco ao vermelho escuro, passando pelo cinza, bege e tons do marrom.


Homenagem à invasão Portuguesa na barra do Rio Cahy. A importância da colonização portuguesa na formação da identidade cultural e étnica brasileira é consensual. No entanto, para uma parcela significativa da população, principalmente para a classe média e a elite econômica, prevalece uma ignorância social e histórica. Essas camadas da sociedade frequentemente exaltam referências europeias, negligenciando e desvalorizando as identidades culturais dos povos tradicionais, que são parte essencial da verdadeira diversidade e riqueza cultural do Brasil.

As escarpas do Grupo Barreiras, descritas por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, exibem estratos sedimentares com variações de cores marcantes. Essas cores resultam da ação das águas subterrâneas ao longo de milhares de anos, que descoloriram algumas camadas e depositaram óxidos de ferro, tingindo outras com tons vermelhos e laranjas.

Aos olhos treinados de um geólogo, as escarpas e seus pequenos segredos, escritos em grãos de areia, seixos de rios e fósseis, contam uma história dramática, de milhões de anos atrás, quando as capas de gelo da Antártica e da Groenlândia estavam se formando. Isso deixou nesta parte do mundo o clima mais seco, semi-árido, dominado por savanas e animais bizarros.

Essas formações geológicas são hoje conhecidas no jargão científico como “Grupo Barreiras” ou simplesmente “Barreiras”, um conjunto de sedimentos e rochas formadas por rios, enxurradas e deltas costeiros que depositavam areias, cascalhos e lamas. 

Após a sua formação, o Grupo Barreiras resistiu às forças naturais do planeta por quase dois milhões e meio de anos. Ao final da última era glacial, há cerca de 11 mil anos, o aquecimento contínuo da atmosfera terrestre fez com que as capas de gelo polares e das altas montanhas começassem a degelar. Com isso o nível dos oceanos do mundo subiu lentamente e criou frentes de erosão marinha (as falésias), que progressivamente recuaram em direção ao continente. 


Ao contrário das areias das praias que sofrem erosão e deposição em semanas e meses, os sedimentos do Grupo Barreiras (parte superior da foto), foram depositados ao longo de milhões de anos. Os altiplanos costeiros do Barreiras, as falésias, suas matas e recursos naturais permaneceram preservados até o século XX, quando teve início a segunda invasão no território, por madeireiros e especuladores imobiliários.

As falésias são produtos da erosão marinha em momentos em que o nível dos oceanos esteve mais alto: há aproximadamente 120 mil anos e 5 mil e 700 anos.

As mudanças climáticas nos últimos milhares de anos, empurraram as savanas para o interior do Brasil e a floresta úmida amazônica em direção ao sul, criando uma conexão entre ela e a floresta Atlântica. E foi justamente no sul da Bahia, que essa conexão atingiu o seu esplendor. As condições ideais de clima, os solos e a abundância de água, permitiram uma riquíssima mistura de espécies vegetais, formando a hileia baiana, um recorte único da Mata Atlântica, que guarda similaridades e coincidências com a Amazônia. Sobre o altiplano costeiro do Barreiras, outros subtipos da Mata Atlântica floresceram, como a floresta de tabuleiro, rica em palmeiras e ciṕos e a mussununga, um ecossistema semelhante à restinga, mas localizado em maiores altitudes. 

Neste ínterim, levas migratórias trouxeram ao Brasil povos nômades, através da Ásia e da América do Norte. Eles se estabeleceram no território e a sua cultura floresceu, adaptada às mudanças climáticas e ambientais que o planeta empreendeu aqui. Se pudéssemos voltar no tempo, há cerca de onze mil anos, veríamos os ancestrais dos pataxós (a etnia que hoje vive no território), caçando mastodontes sobre o altiplano costeiro do Barreiras e tentando proteger suas crianças de tigres-dente-de-sabre. Mais tarde, por volta de oito mil anos, eles se adaptariam de forma harmoniosa às florestas densas próximas ao litoral, coletando frutos e mariscos, pescando e, mais tarde, em tempos históricos, construindo suas aldeias. 

Essa forma de viver, de respeito e adaptação ao território, perdurou até quinhentos anos atrás. A invasão portuguesa trouxe a cruz e a espada. Os indígenas, dizimados por doenças e pela brutalidade do homem branco, chegaram ao século XX resistindo aos apelos da sociedade capitalista e às pressões territoriais do coronelismo, herdado das capitanias hereditárias. Após um massacre na “Aldeia mãe”, próxima ao Monte Pascoal, na década de 50 do século XX, os pataxós, legítimos herdeiros do território, iniciaram sua diáspora pelo extremo-sul da Bahia.

Apesar dos cinco séculos de ciclos exploratórios do invasor branco, a floresta se regenerou nos locais onde foi destruída. A hileia Baiana ficou intocada nas regiões de difícil acesso. 

A segunda leva de destruição chega com a BR-101, nas décadas de 70 e 80. Mais floresta vem abaixo para retirada de madeira. Nesse período, chegam na região de Porto Seguro, famílias vindas do sudeste e jovens em busca de uma vida alternativa, em contato com a natureza e com o mar. Os novos moradores trazem também dinheiro. As famílias nativas, acostumadas a viver com o pouco que o território fornece, subitamente recebem estímulos financeiros para vender as suas propriedades à beira-mar e nas regiões mais nobres. Começa uma nova fase de destruição: a expansão urbana e a especulação imobiliária. Os forasteiros que chegaram, detém as melhores terras, as melhores áreas, o poder econômico.


As árvores de grande porte nas matas prístinas, atestam a diversidade das florestas e servem de abrigo para a fauna que ainda resiste. Sem nenhuma forma de controle e intervenção por parte de órgãos governamentais, a ação humana, principalmente nas últimas décadas, devasta de forma rápida e isola os fragmentos florestais.

Nos anos 90 e meados do século 21, Porto Seguro e região se torna um dos principais atrativos turísticos do Brasil. Todos querem conhecer, todos querem morar no paraíso. A população nativa é empurrada para as periferias, à medida que novos loteamentos e bairros vão sendo abertos – mais floresta é derrubada.

Como reflexo de políticas do governo federal, que garantiu o direito à terra, ainda nos anos 90, o povo pataxó voltou a se aldear. Surgem as aldeias da Jaqueira, a Aldeia Velha e tantas outras que resgatam a dignidade dos herdeiros do território. Com elas, grandes áreas de vegetação nativa têm  a sua sobrevivência garantida. 

A especulação imobiliária avança na segunda e terceira décadas do século 21. Porto Seguro se torna um atrativo também para estrangeiros, trazendo mais dinheiro e oportunidades de negócios – hotéis, condomínios, loteamentos, pousadas. Parte da orla marítima fica completamente ocupada em Arraial D’Ajuda, a ponto de não se ver o mar. Ao longo das falésias, o  trecho estreito de praia impede a ocupação. Mas ainda há o alto do altiplano costeiro, oferecendo uma vista grandiosa. 


A especulação imobiliária é o motor da destruição dos recursos naturais na Costa Pataxó. Intensificada nos últimos cinco anos, nem áreas com alto risco geológico, como as bordas das falésias, escapam da ignorância e da ganância humanas.

O forasteiro que antes trazia a espada e a cruz, agora, miscigenado nesse caldo cultural e étnico,  traz o ópio do divertimento barato, do exibicionismo, do hedonismo. A sociedade brasileira em sua grande parte alienada, se deixa ludibriar por esses valores e valida a destruição. O indígena, a terra, a floresta não importam. O importante é o dinheiro, o desenvolvimento irracional e a todo custo. Os hotéis e loteamentos avançam, a destruição parece não ter fim. Sítios arqueológicos são descobertos e destruídos. Poucos são registrados. A herança do território esquecida. 

Em meados de 2025, a busca por novas terras para construção civil deixa um rastro de destruição. Atrás dele, casas de veraneio vazias a maior parte do ano e uma bolha imobiliária prestes a implodir, com vendas escassas, a promessa falaciosa do dinheiro fácil e da felicidade no “paraíso”.

O futuro é incerto. A expansão urbana pede água e aqui, ela é extraída da terra, dos mananciais subterrâneos do Barreiras. A água precisa da floresta para ser mantida. A floresta precisa do solo do Barreiras, das abelhas, dos morcegos, dos animais da floresta de tabuleiro, da mussununga e da hileia baiana. As mudanças climáticas acentuam os eventos extremos e catastróficos. Sem a floresta, não existe água, proteção contra os ventos e contra as chuvas extremas. A equação é simples, mas pouca gente entende, ou, propositalmente, finge não entender. 

É inadmissível que em poucas décadas, a ganância destrua um território que se desenvolveu durante milhões de anos.  É preciso resgatar o passado remoto e a sabedoria dos povos tradicionais, para, talvez, termos um futuro.


O Grupo Barreiras é o principal aquífero e manancial de água para as comunidades da Costa Pataxó. Mas nem mesmo o risco de salinização ou o fantasma da escassez de água, são capazes de frear o furor do desmatamento para a especulação imobiliária.

Conheça um pouco mais sobre o Grupo Barreiras e a Costa Pataxó neste vídeo curto.

3 Comments

  1. LUIZ CARLOS FIALHO DE CARVALHO

    Excelente trabalho. Adorei todos os conteúdos abordados parabéns.

    • actaterrae

      Obrigado! Seu feedback é muito importante para o nosso trabalho.

  2. Christiane Ferraz Blower Stock

    Muito bom trabalho! Prende a atenção e o interesse.

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